Escrito por Bruna Rosalem

Apesar de gravitar nos diversos discursos acerca do pensamento freudiano uma visão talvez pessimista, negativista no que diz respeito à civilização, aos caminhos da evolução humana, a maneira como o ser humano transita entre os pares, estabelece hordas, clãs, sociedades comunais, como este ser se relaciona com os elementos naturais, com os animais, como constrói relações, cria leis, hábitos e organiza a vida em sociedade, vimos que Freud está nos falando que de uma certa maneira este evoluir, como algo que remete a seguir em frente, progredir, ultrapassar estágios ou fases, paradoxalmente, estaríamos na verdade fazendo uma involução, ou “evolução para trás”, “progresso às avessas”. Isso não seria exatamente “pensar negativo”, porém textos como Mal-estar na Civilização (1930), Mal-estar na Cultura (1929-1930) Totem e Tabu (1913) dialogam sobre os aspectos mencionados acima nos trazendo apontamentos importantes sobre a tendência humana de retornar ao estado abandonado, inanimado, inorgânico.

Freud demonstra o quanto nossa espécie busca regressar (ou ainda estaríamos fixados) naquele estágio mais remoto possível, onde nem mesmo nos reconheceríamos como algo no mundo: um estado autoerótico, autoreferente, placentário. Ou seja, anterior ao ser pulsional, onde apenas existiria um pedaço de carne revestido pela placenta protetora. É como se fossemos seres isentos de afetos e que nada poderia nos abalar, sem preocupações mundanas, baixíssima tensão, ausência de neuroses, que aliás, estas últimas, nos acompanharão a vida inteira. Diria que “o neurótico é um ser primitivo”.

Mais precisamente na obra Totem e Tabu, o termo animatismo, que seria uma fase pré-animista da humanidade (como seres inanimados, indiferenciados), aparece em seus escritos, emprestado do etnólogo Robert Marett. Freud chega à conclusão que o abandono do estado de natureza se deu através de três grandes eventos na história da humanidade: evento geológico-climático, a era glacial, seguido de um processo gradativo civilizatório e transformações do meio ambiente, depois mais tardar, as questões que envolviam a organização dos grupos, moralidade e o parricídio. Visto por estes aspectos e através da leitura dos textos mencionados, a humanidade parece estar construindo sua história de maneira declinista e entrópica, e talvez, é possível acrescentar, caótica, neurótica, doentia.

Na obra de 1913, Freud argumenta que o primeiro estado da humanidade é o animista, depois o religioso, e por fim, o científico. De maneira breve, podemos ensejar que o primeiro foi basilar para criar o estado religioso, por conter fundamentos para estabelecer as religiões, como uma doutrina geral das almas, algo imaterial, como se elas perdessem sua materialidade. Assim, o estado animista seria marcado pela passagem de uma consciência material para uma outra transcendente simbólica (Bocca, 2021).

Se pensarmos à maneira da evolução darwinista, essa transformação ocorre de maneira disruptiva, não gradativa. No caso aqui, existe um fenômeno catastrófico externo que causa modificações internas nos seres vivos. Dessa forma, este evento motiva a passagem do estado animatista ao animista, e do animista ao religioso com o advento do parricídio (Bocca, 2021). Este segundo acontecimento é palco então para que o clã totêmico fosse orquestrado. E assim vivenciamos até então, uma espécie de interdição, de barragem, uma nova ordem social de restrições morais e sexuais, agora pelas figuras dos irmãos rebelados do grupo e não mais pelo pai dominador. Mais adiante veremos novas linguagens e signos para comunicação, novas relações em sociedade e outras maneiras e possibilidades de convivência e atividades investigativas entre os pares.

Apesar de o conceito de animatismo ser pouco enfatizado nos escritos freudianos, entre outros, é algo a ser discutido se refletirmos na ideia de um ser que vive o dilema de existir no estado mais primevo, mais primitivo, mas que é ameaçado ao querer preservar este estágio, sentindo o conflito entre a autopreservação (porém, isento de problemas) e o prazer de procriar (o que implica socializar, criar laços, lutar, ceder). Limitar a vida sexual ou ampliar a vida social? Eis a questão.

Homens civilizados ao terem sido excomungados do ambiente natural, porém dotados de linguagem e raciocínio parecem sempre desejar retornar ao grau zero da existência humana. Um lugar talvez supostamente protegido das mazelas, privações e imposições que nós mesmos criamos. No entanto, ao mesmo tempo, subtrai-se o prazer e seus desdobramentos.

Referência Bibliográfica

BOCCA, F. V. Animatismo, antes e depois de tudo. In: Paris: Revue Recherches em Psychanalyse. V. 2. Nº 32, 2021.


Bruna Rosalem

Psicanalista Freudiana/Lacaniana. Professora, escritora e colunista. Atendimento e supervisão presencial e on-line.

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