Escrito por Bruna Rosalem

É sabido que os sintomas que se desencadeiam oriundos de experiências traumáticas ainda é temática recorrente entre os desafios da clínica contemporânea, independente do método investigativo, linha ou abordagem.

Desastres naturais como o rompimento de barragens, por exemplo, o evento de Brumadinho/MG, guerras civis, ataques terroristas (Grupo Hamas ao povo israelense), pandemias, ataques em escola (assassinos em massa como em Realengo/RJ), contágios, tragédias “anunciadas”, a exemplo da Boate Kiss em Santa Maria/RS, evento até hoje sem resoluções na justiça, famílias despedaçadas e traumas para o resto da vida. Entre muitos outros acontecimentos sentidos e experimentados em tempos atuais que deixam marcas em nosso corpo e psiquismo.

Desde as contribuições de Sigmund Freud e Sándor Ferenczi, várias foram as considerações ao se debruçarem sobre as mais diversas modalidades de sofrimento psíquico ocasionados por acontecimentos traumáticos, trazendo à tona discussões sob a égide do olhar psicanalítico acerca do cenário de morte e caos da Segunda Guerra Mundial e seus combatentes feridos e em extrema aflição.

Algo que repercutiu fortemente nas formulações freudianas sobre as origens do trauma, era a ênfase dada aos fatores desencadeantes externos na equação etiológica nas neuroses e a impossibilidade de inscrição (Canavêz & Herzog, 2011) daquilo que padecia o sujeito e, assim, fazia-o repetir as experiências traumáticas, revivendo-as intensamente, causando ainda mais sofrimento, como apontando na obra de Freud de 1920, “Além do princípio de prazer”. Até então muitas de suas constatações sobre o trauma alicerçavam-se no imaginário, de caráter sexual, algo criado.

Apesar de apontar para uma etiologia das neuroses traumáticas questões oriundas da infância, de cunho sexual, é possível apontar que há também de uma luta travada entre o desejo de morte e a preservação da vida, abrindo espaço para outras referências que não apenas de investimento libidinal.

Segundo Canavêz & Herzog (2011), esta situação nos faz refletir e apostar que a problemática do sujeito que sofre de algum trauma na série das configurações de padecimento psíquico instigadas pela cultural vigente, vem assumindo características incisivamente traumáticas.

Numa sociedade que nos provoca tanto mal-estar _ remetendo ao texto de Freud “Mal-estar na civilização” (1930) _ que nos enreda nas tramas das crenças, dos medos, das repressões dos sentimentos e das paixões, do esfalecer das ideias e das possibilidades de criação, dos empecilhos em inventar e reinventar saídas inusitadas para um cotidiano que insiste em nos manter alienados ao máximo; falar em afetações que vão muito além de perturbações, mas traumas que perduram e machucam é algo sempre complexo. Já em sua época “Freud não só concentrou seus esforços para lançar luz aos mecanismos dos sintomas histéricos e elaborar um método capaz de tratá-los como acabou denunciando os efeitos de uma sociedade repressora e da medicina que a esta estava associada” (Canavêz & Herzog, 2011:122).

E vemos hoje, por mais que nossa sociedade de alguma maneira possibilite espaços para apalavrar a angústia e que de fato constata recorrentemente a existência de afetos sentidos no corpo de maneira bastante intensa e sofrida, porém sem existir lesões orgânicas, que tem levado um número expressivo de sujeitos à psicoterapia, ainda assim, parece surgir uma espécie de “varredura” de sintomas, de higienismo no corpo. Isto é, enquanto é desafio para a psicanálise tomar o sintoma como produção do sujeito e não como algo estranho e adverso a ele, temos a sedução diária da indústria farmacêutica aliada as especialidades médicas, veiculada em diversos meios de comunicação que prometem cura e cessação de qualquer tristeza, sofrimento, angústia, embotamento.

A impressão que dá é que estamos numa era onde é proibido sofrer. O luto, por exemplo, que gera tristeza por um período de tempo na vida de quem perdeu um ente querido, começa a ser “tratado” de maneira medicamentosa. Ao sujeito não é mais permitido perdurar sua desolação, ou mesmo querer estar mais isolado, refletindo em sua dor. A questão é que não pode haver espaço interior, podemos considerar assim, para aquilo que gera desprazer. É possível dizer que gravita entre nós uma espécie de imperativo do gozo, muito impulsionado pelo fenômeno das redes sociais. “Seja feliz!”, a todo custo e a qualquer tempo.

Apesar deste discurso nos abrir para uma seara de debates e reflexões acerca das neuroses atuais, dos traumas na contemporaneidade, há certas resistências por parte dos psicanalistas em considerar outros fatores que não os sexuais, da infância e do conflito edípico na atualidade para o sofrimento psíquico, e também a presença marcante e incontestável do crescimento exponencial mercadológico de psicotrópicos. A indústria dos psicofármacos necessita transitar entre os diálogos e pesquisas dos psicoterapeutas, começando pela investigação de seus próprios pacientes em como respondem à terapia e ao uso de medicamentos.

Neste ensejo, não nos cabe dizer que concorrem “a cura pela palavra” com a limpeza do sintoma. A psicanálise e a psiquiatria interpretam o sintoma de maneiras diferentes, por esta razão há elementos para problematizar, principalmente, pela psicanálise, o caráter pragmático e imediatista atribuído as questões psicopatológicas. Estas, ao tentar desconsiderar os fenômenos da subjetividade do sujeito, busca normalizá-lo, igualá-lo, padronizá-lo, o que é impossível. Se há sujeito, há subjetividade, portanto há diferenças e peculiaridades. E se tem algo que o medicamento jamais fará é possibilitar que o paciente reflita sobre si. A terapia, permite.

Em análise, o que é possível alcançar, com muito trabalho árduo, diga-se de passagem, é ressignificar os traumas, atribuir outros sentidos, construir outros caminhos, vislumbrar saídas inusitadas para o sofrimento. Mesmo que isso tudo possa ser incerto.

Hoje se faz necessário abrir os diálogos para as novidades, descobertas e pesquisas que surgem no ramo da psiquiatria e ainda mais presente, a neurociência, para evitar uma clínica hermética, fechada em si mesma. Correndo riscos, inclusive, de cair num suposto ostracismo.

Cabe ressaltar que antes de qualquer resistência, principalmente, por parte do analista, é preciso estar às voltas com a ferramenta mais importante numa análise: a escuta. Escutar como o sujeito lida com seus traumas, mesmo que ele acredite genuinamente no “milagre” dos psicofármacos.

Referência Bibliográfica

Canavêz & Herzog. Entre a psicanálise e a psiquiatria: a medicalização do trauma na contemporaneidade. In: Tempo psicanalítico. Rio de Janeiro, v.43.1, p.111-129, 2011.


Bruna Rosalem

Psicanalista Freudiana/Lacaniana. Professora, escritora e colunista. Atendimento e supervisão presencial e on-line.

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