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Observações sobre carne e corpo em um viés psicanalítico

Pensei a partir de minhas observações cotidianas a questão que situa o lugar da carne sob a possibilidade de um olhar psicanalítico. Temática bastante interessante que provocou reflexões acerca dos limites e possibilidades da prática psicanalítica na contemporaneidade, levando-se em consideração a carne enquanto este corpo que faz borda, como substância gozante. Um corpo que sente, que expressa tudo aquilo que o ser falante muitas vezes não dá conta, esta carne que procura dar sentido, numa busca inquietante. 

O corpo a ser marcado pelo tempo e pelas transformações que a carne sofre ao longo dos anos, descola-se do corpo e a imagem que temos é a iminente finitude tão inapreensível para o inconsciente atemporal. A marca corporal é dual: faz presença na ausência e ao mesmo tempo endereça a alguém, o próprio sujeito. Através da carne o sujeito enlaça a si mesmo e o possibilita ao Outro corporizar-se.

A ideia freudiana de pulsão fez junção ao somático e o psíquico, concebe forma e contorno. Freud definiu este conceito de pulsão como fronteiriço (soma e psíquico). O objeto na perspectiva da pulsão não é somente o objeto em si, é sempre algo mais além. Ou seja, não basta alimentar-se de determinado tipo de comida, nenhum alimento de fato satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto sempre faltante. Aquilo que é impossível recai na satisfação, inúmeros objetos podem surgir, suceder um ao outro, mas do confronto entre eles restará um eterno vazio, um espaçamento, um furo, um vão.  O que escapa e atinge a superfície é o conteúdo que o sujeito pode ousar a se deleitar, atuando quase que cenograficamente pelas marcas inscritas no seu corpo, na sua carne. 

A pulsão como força constante e inesgotável atua sem previsões ou garantias de controle. Fatos são vividos e falados, entrelaçam-se a todo tempo, é dinâmico e econômico. Os efeitos de toda esta atividade dinamizam a vida do sujeito e são sentidos inevitavelmente no corpo que faz sustentação, nas vicissitudes da carne.  

Os produtos dos infinitos cruzamentos significantes permitem sobrepor sentidos. O corpo é o “fio da meada”, a palavra, a ressonância necessária que perpetra na carne. Impossível arrancar a palavra do corpo. O verbo “gruda” no corpo através dos impactos acústicos, produzindo efeitos.

Diante destas reflexões que trago, assim como a carne, o corpo é versão deteriorante, pois como citado acima, ao desprender-se revela a real finitude que nos é tão cara e, dificilmente aceitável, aos moldes de uma sociedade narcisista que finca parâmetros de beleza e juventude eternas.  

A carne é também o corpo que goza, torna-se palco dele. Busca-se sempre mais engendrar gozos almejadamente intensos. 

Complementando com a fala de Merleau-Ponty “é preciso pensar a carne, não a partir das substâncias, corpo e espírito, pois seria então a união dos contraditórios, mas dizíamos, como elemento, emblema concreto de uma maneira de ser geral” (Merleau-Ponty, 2003, p. 143). E mais, a carne enquanto “sensível no duplo sentido daquilo que sentimos e daquilo que sente” (ibid. p. 234).

O sujeito constrói suas ilusões, mitos e fantasias atravessado por um corpo esgotável, mortal, matriz de sensações e possibilidades.  É a borda que carrega um sujeito.

Referência Bibliográfica

Merleau-Ponty, M. (2003). O visível e o invisível (J. A. Gianotti & A. M. d’Oliveira, Trad.). São Paulo: Perspectiva.

*Texto produzido também a partir de minhas anotações na Pós-graduação Filosofia, Psicanálise e Cultura, PUC/PR.

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