Comentarei brevemente neste texto a questão trazida por Sigmund Freud em seus escritos de 1916 sobre “Criminosos em consequência do sentimento de culpa”.  

Apesar de não figurar na área do Direito Penal, este assunto em particular é muito interessante, pois demonstra o quanto as deliberações da área jurídica “beberam da fonte” (e ainda permanecem) do conhecimento e das perspectivas apresentadas pela Psicanálise. Discussões como estruturas neuróticas, psicóticas e perversas, o legal e o normal, o normal e o patológico, psicopatia (que não necessariamente pertence à estrutura do perverso, considerando que para a Psicanálise, temos todos nuances perversas), apelo à função paterna, parricídio e punição.

Ressalvo que mesmo estando fora do ambiente do sistema penitenciário, em muitos debates, pesquisas e leituras realizadas, é possível inferir que, embora o imaginário social atribua às pessoas encarceradas por diversos crimes, em especial, homicídio, à loucura, a estrutura psíquica destas pessoas não se encontra fora da estrutura neurótica. Parecem revelar com seus atos um apelo à função paterna, numa estrutura neurótica obsessiva. 

Atribui-se ordinariamente que quem comete crime é louco, na linguagem popular, ou seja, algo como romper com a realidade, o que reforça ainda mais o estereótipo do louco que necessita conviver longe da sociedade “normal”. Em nossa linguagem, esta figura estaria no campo da estrutura psicótica, porém, em Psicanálise, vemos que as estruturas são maneiras de situar o sujeito do inconsciente em sua linguagem própria e seus desdobramentos com o outro e com a sociedade. Não haveria rigidez nestas estruturas, são maneiras de ser e agir. Assim como comentado anteriormente sobre a perversão habitar em nós, Freud já nos alertava a respeito de certa perda de realidade na neurose e na psicose. É evidente que existem diferenças marcantes entre estas, como por exemplo, o retorno do recalcado na neurose e a foraclusão do nome-do-pai na psicose com suas decorrências possíveis, no entanto, o sujeito pode transitar entre as estruturas. 

É possível inferir então, que a maioria da população encarcerada nada mais é que sujeitos comumente neuróticos que por motivações singulares passaram ao ato criminoso. 

No texto atemporal “Criminosos em consequência do sentimento de culpa” de 1916, Freud escreveu sobre a existência de um elevado sentimento de culpa por parte de quem comete crimes em busca por uma espécie de auto punição que antecede aos atos, contrariando a ideia de que haveria um supereu enfraquecido enquanto o único responsável por práticas antissociais. 

A partir das reflexões suscitadas pelos elementos trazidos pela instância da lei, da moral, o supereu, Freud abriu-nos a possibilidade de pesquisar não somente para a área jurídica e criminal, como também aspectos gerais da cultura e da contemporaneidade que incidem sobre todos nós acerca das possíveis motivações que levam o sujeito a adentrar no universo da criminalidade sob novas bases teóricas, a saber, por exemplo, o fracasso da função paterna. 

Outra face da culpa levantada como o conceito de dívida simbólica apontada na leitura do caso “O homem dos ratos” de 1909, como essencial na construção da neurose obsessiva, podemos refletir sobre “a necessidade de pagamento de dívida” através da punição atribuída ao criminoso que é considerado pela sociedade enquanto um sujeito que guarda uma dívida permanente até que “acerte as contas” na prisão. Neste ensejo, a figura do juiz que concebe a sentença final, ou seja, o terceiro elemento, castrador, passa a ser importante nesta trama, pois constitui-se um apelo ao Pai, unindo lei e transgressão. 

É claro que tomando as considerações de Freud sobre crime, culpa e punição, nem todos os atos criminosos podem ser elaborados sob esta ótica. Assim como o sintoma conta a história do sujeito quando este o narra em análise, as inúmeras motivações (conscientes e inconscientes, à princípio) devem sem investigadas e pensadas em suas mais diversas perspectivas. Afinal, em Psicanálise, o sujeito é considerado em sua singularidade, acima de tudo. 

De alguma forma, é possível apreender que os atos criminosos passíveis de elaboração e de um enredamento simbólico, são aqueles marcados por uma repetição oculta, velada, associada à pulsão de morte, ao retorno do traumático. Como uma força que age no sujeito, a partir das vozes impositivas do supereu que, sem conseguir “escapar”, o compele ao crime e ao castigo. 

Em uma outra obra escrita por Freud, Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), ele demonstra por meios de vários exemplos, como as mais singulares práticas cotidianas que, aparentemente, são atos conscientes, na verdade constituem fenômenos determinados pelo inconsciente que afeta não apenas o pensamento, como também culmina em ações, lapsos, esquecimentos, chistes, atos “equivocados”.   

Freud aponta que estes acontecimentos seguem vias previsíveis e obedecem a leis que operam por deslocamentos, condensações e distorções, assim como ocorre no trabalho dos sonhos. Então, ao tratar destes atos “equivocados”, Freud aborda um tema discutido em “A Psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos” de 1906, colocando que a instância inconsciente, força pulsante maior e mais abundante, força o criminoso, nos tribunais, a auto traição e a produção de provas. 

Freud, neste ponto, acrescenta que ninguém “em sã consciência” provocaria sua própria acusação, seja numa declaração de amor com sinceridade ou para defender sua honra. A auto traição nos tribunais suscita diante dos juristas reflexões acerca dos atos inconscientes que gravitam em torno das discussões entre Psicanálise e Criminologia. Debate que se tornou fértil pelos escritos de Freud de 1916 mencionados anteriormente. 

Ainda diante desta discussão, Freud prossegue dizendo que há uma tendência à autopunição fruto dos conflitos entre consciência e censura, na segunda tópica, vinte anos depois da versão de 1901, algo como ego e superego. 

Na chamada “virada das pulsões” em “Além do princípio do prazer” (1920), Freud nos aponta que muitos ferimentos aparentemente acidentais sofridos por doentes são na verdade lesões auto punitivas ou auto destrutivas, como vimos no início deste texto, a pulsão de morte e sua relação com a instância vigilante e castigadora, o supereu. De 1901 a 1924, a leitura freudiana segue com transformações no que diz respeito às provas no que tange aos atos inconscientes de autopunição. 

Retomando o texto “Criminosos em consequência do sentimento de culpa”, Freud nos apresenta uma vinheta clínica instigante a respeito de que muitos de seus pacientes, alguns inclusive figurantes na alta sociedade, passaram a confessar não apenas transgressões vivenciadas na infância como furtos e fraudes, entre outros, como também ações durante o tratamento psicanalítico, como uma espécie de “alívio mental”. 

Neste trecho, é interesse refletir como é possível a qualquer sujeito estar propenso a cometer atos infracionais em suas mais diversas gravidades e natureza. Ou seja, esta força pulsional de morte que age sob nós impulsiona constantemente ao ilícito. 

Nestes casos, o sentimento de culpa que poderia ser efeito da ação censurável moralmente, passa a fazer o contrário, torna-se a própria causa. 

Uma culpa imensa, camuflada, inacessível, fazem com que os pacientes pratiquem aquilo que era justamente proibido, a associar a algo tangível. As questões que se colocam então seriam desvendar o sentimento obscuro de culpa anterior a ação, e se este fator é considerável na criminologia. 

Há que se pensar nas elaborações freudianas acerca do crime humano não só por este viés, como também em Lacan quando nos coloca certa fragilidade da incidência da metáfora paterna. E neste texto de 1916, a proposição de Freud é a de tomar este sentimento de culpa numa relação tensionada fruto do conflito edípico: o sujeito pune-se por seus desejos incestuosos destinados à mãe e o parricídio em relação ao pai. 

O sentimento de culpa que precede ao ato moralmente recriminável que passa a se tornar cada vez mais enigmático nos escritos de Freud, o psicanalista observa como estes atos são análogos às situações em sua clínica. E os pacientes ao contarem e rememorarem as suas transgressões sentiam-se culpados, contraditoriamente, cometiam novos atos transgressores como forma de aliviar as ações. 

Como vimos, a primeira hipótese deve-se ao desenrolar do complexo de Édipo e a segunda hipótese, ao conceito de pulsão de morte. 

Ademais, esta questão do autoflagelo, da autopunição, do provocar a própria dor, acompanhamos nos escritos freudianos do masoquismo. Estas reflexões que mais uma vez Freud nos evoca ao debate revela outras nuances econômicas de auto perpetração do castigo e dos crimes de culpa.   

Talvez um esforço de fundir, pós resolução edípica, a pulsão de vida e a pulsão de morte. A rivalidade Eros e Thanatos amplia as perspectivas de se pensar a relação culpa e autopunição para além do próprio Édipo. 

A instância da lei e da moral, o supereu, ligado à censura e ao castigo, vem do isso constantemente pulsante relativo à autoridade. Perpetra a todo tempo seus imperativos (goza com isso), atormenta, tem seus caprichos a serem atendidos, vigia e pune o sujeito em seus mais diversos conteúdos expressivos, inclusive, sintomáticos, fazendo com que ele viva em um looping paradoxal entre ideal de eu e eu ideal: Seja como teu pai, mas não pode ser como teu pai! Ou seja, castiga o sujeito por nunca se aproximar de um ideal ou por jamais ser suficiente. 

Em síntese, a um só tempo, o sujeito é um fora-da-lei cometendo um crime ou não. 

Dentre todas estas discussões que acompanhamos neste texto, há que se ressaltar o quanto estes conteúdos permanecem contemporâneos e certamente vigentes às doutrinas do Direito. 

Os crimes por sentimento de culpa seguem sendo pauta de dilemas e resoluções perante à pulsão de morte e a instância moral de paradigmas inalcançáveis que é o supereu, sempre massacrante, diga-se de passagem. Estes crimes que implicam castigo a si mesmo são evidentes problemáticas passíveis de discussão acerca da economia dinâmica das pulsões. 

É importante destacar que há uma infinidade de caminhos para lidar com a questão superegoica. Questões do real também, por exemplo, fogem ao representável da linguagem. 

Finalizo este breve escrito, colocando que há ainda muito mais a ser investigado e elaborado por pesquisadores de diversas áreas do psiquismo humano e operadores do Direito acerca da relação crime-punição, culpa, ressentimento, “pagamento de dívida”, encarceramento e a sensação de justiça, dívida simbólica, vigiar e punir. 

Referências Bibliográficas: 

FREUD, S. (1901). Psicopatologia da vida cotidiana. In: FREUD, Sigmund. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Imago, 2006 

Freud, S. (1906). A psicanálise e a determinação de fatos psíquicos. In: Obras completas, v. IX. Rio de Janeiro: Imago, 2006.   

FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 

FREUD. S. (1916). Criminosos em consequência do sentimento de culpa. In: Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Vol. XIV. Rj: Imago 1996. 

FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. In: FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago, 2006 

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